Rodeio: O Choque da Cultura Urbana com a Rural
A questão dos rodeios se transformou em uma questão filosófica. O rápido surgimento de uma sociedade urbana levou a um choque com a sociedade milenar rural. Me refiro ao choque da cultura urbana com a rural, que atinge em cheio os rodeios. É uma questão cultural, mas principalmente de ótica, de lógica e de ética.
Ocorre que a sociedade, a partir do surgimento de uma cultura urbana, não deixou de ser rural. Ambos os grupos têm o direito de definir seus valores. Terão de conviver em harmonia.
Hoje quem usa bombacha tem orgulho do hábito, estilo e não aceita mais ser ridicularizado, taxado de grosso – como acontecia na metade do século passado – segundo relatos do Paixão Côrtes. Senhores intelectuais ativistas, o homem do campo, ou quem gosta da cultura rural, não é o Jéca Tatu.
Sim, já houve transformações dos modos de vida das civilizações. Sendo assim, nesta análise, cabe lembrar Alvin Toffler. O referido autor escreveu o livro ‘A Terceira Onda’, que consiste no entendimento de que a primeira onda representa à sociedade agrícola ganadeira, simbolizada pela azada, a segunda onda à sociedade de revolução industrial, simbolizada pela corrente de montagem, e a terceira onda é a sociedade do conhecimento e da informação, simbolizada pelo computador.
Os rodeios, obviamente, vêm da primeira forma de sociedade, a ganadeira. Mas há algo a ser destacado nesse sentido, a referida sociedade não deixou de existir, naturalmente sofreu transformações e veio a se tornar o que pode ser chamado de cultura rural.
A cultura urbana remete a uma configuração que homogeniza este estilo de vida e se manifesta em todo mundo. Não é só o computador que é associado à sociedade da terceira onda, conforme coloca Toffler, é o Shopping Center, é a Coca cola, o McDonald’s, o Vídeo Game, o cinema, etc. Mas há um porém: Nem todas as cidades contam com essas opções e além disso, não representam uma preferência universal.
Uma visão popular envolve pessoas urbanas a manterem relações com animais de pequeno porte e pessoas rurais, com animais de grande porte. As rurais estão no ambiente natural dos animais, o campo, e as urbanas em uma criação do ser humano, a cidade.
A questão é filosófica, quando verificamos existir a ótica de dois grupos sociais a respeito do que é, ou não é aceitável. Quem gosta de Rodeio e gado não vê nenhum mal no que faz, ao contrário dos ativistas que entendem como uma agressão, ou seja, implica em maus tratos. É uma questão de opinião, resta saber qual se consolidará.
Os ativistas levantam a questão da consciência animal. Desenvolvem uma relação de igualdade com os animais. Em não raros casos, colocam seus bichos de estimação na condição de filhos.
Tanto é uma questão de opinião, que basta imaginar como seria se os animais realmente fossem conscientes e passassem a se comunicar de forma direta e clara com os humanos, se falassem a mesma língua. Crie em hipótese como seria um boi, um porco ou uma galinha, clamando por suas vidas em direção ao frigorífico, argumentando na mesma linha dos ativistas. A verdade é, que cientificamente, um animal se comunicar diretamente com um humano, desenvolvendo um debate filosófico como o dos ativistas, é utopia.
Por outro lado, não é aceitável manter os rodeios sem nenhuma reflexão a respeito da forma que estão sendo realizados. Refletir, colocar sob análise, é algo positivo e inevitável nos dias de hoje. Os próprios organizadores e tropeiros mudaram alguns procedimentos com a intenção de zelar por seu patrimônio e evitar prejuízos. A questão do bem estar animal, mesmo como uma estratégia de gestão, também toma corpo entre os promotores de rodeio demonstrando que se pensa em como proceder com os animais.
Contudo a comunidade produtora dos Rodeios vai ter que se acostumar com os ataques dos ativistas. Não é mais possível imaginar um mundo rural sem oposição, ela surgirá em todos os campos. Não adianta mais querer se transformar em um soldado farroupilha que o campo de batalha é outro. Pensar em tradição ignorando o mundo urbano levará a situações desconfortáveis, como a atual.
Chegou a hora do pessoal dos rodeios pensarem mais, produzirem mais no campo intelectual, principalmente os ligados a campeira, pois as pesquisas até o momento foram predominantemente artísticas, tendo em vista o MTG como exemplo. Até pouco tempo atrás, o Rodeio era manifestação cultural legítima pelo simples fato de acontecer, atualmente surgem normativas e leis de todos os lados.
A tradição é um meio primitivo de ensino, de transmissão de saberes como os campeiros. As comunidades produtoras de tradições, geralmente, são compostas por pessoas simples. Pouco se pensou sobre enfrentar um debate como o relativo à manutenção dos rodeios e pouco se estudou para isso. Os ativistas levaram essa batalha para um campo pouco estudado pelos promotores de rodeio. Se falou muito em cultura, em geração de empregos, mas pouco em como lidar com esse choque cultural. Subestimaram os ativistas.
Os promotores de rodeio terão que se preparar para esse debate. Não podemos permitir que essa questão se transforme em uma disputa de tapetão.
Os ativistas não podem se valer de brechas em leis que foram criadas sem o respaldo de um debate como o que está acontecendo agora para acabar com os rodeios. Essa questão envolve debates mais complexos.
Em cultura e reconhecimentos de esporte, algo que não pode ser ignorado, é a anuência. Os ativistas não têm expressão nesse debate se comparada a vontade deles com a da comunidade produtora das provas eqüestres. O que se apresenta à sociedade pelos ativistas é apenas uma ótica com uma frágil e oportunista base jurídica que não sensibiliza a maioria das pessoas.
O que representa nitidamente um ataque, é apresentar o Rodeio como uma atividade de marginais. Os ativistas são novos atores que tem a função de evitar excessos e barbáries, mas não são mais importantes que qualquer ator do meio dos rodeios. Não se pode aceitar que seja dada a eles maior importância na sociedade do que é dado a um vaqueiro ou laçador. Uma vez a capoeira foi marginalizada no Brasil, hoje é Patrimônio Cultural Imaterial.
A ética entre esses grupos ainda está em construção. Por enquanto são somente argumentos soltos e radicais, principalmente por parte dos ativistas. Não é possível que um ativista compare a economia dos rodeios ao mercado de drogas no intuito de dizer que ambos geram empregos, mas que são ilegais e injustificáveis, como assisti em um programa de TV. Um ser humano não pode ser menos importante que um boi. O que está claro neste comparativo, é que é mais fácil enfrentar promotores de rodeios do que traficantes. Se vamos pensar em evolução da sociedade, vamos eleger prioridades.
Há muitos acidentes com humanos, isso é fato. Nem todas as pessoas trabalham no que gostam, mas por dinheiro, por necessidade. Existem pessoas que se drogam para trabalhar. O mal do século, e a maior causa de desligamento do trabalho, será a depressão. O ser humano é submetido a situações que lhe estressam, lhe machucam e causam danos psicológicos. A alegação de que os animais são obrigados a procedimentos, é filosoficamente discutível e foge do campo da ética. A questão é que se o ser humano se obriga a executar algumas tarefas, os animais também podem ser obrigados, se respeitados os seus limites e considerada uma proporcionalidade com os limites humanos.
A lógica do tropeiro é não esgotar seu boi, é preservar seu patrimônio evitando prejuízos, salvo exceções de comportamentos reprováveis. O que pode ocorrer em um procedimento padrão é um acidente.
A lógica do bom profissional, e aí me refiro ao patrão e ao empregado, é trabalhar com segurança, porém ambos estão vulneráveis ao imprevisto.
O atleta, mesmo acompanhado e bem orientado está sujeito a acidentes.
Esse choque da cultura urbana com a rural, provocado por ativistas, ainda não tem força suficiente para mudar uma sociedade de forma tão radical. O que se faz no campo, ou nos rodeios, não incomoda a grande maioria da sociedade urbana. Não existe justificativa plausível para interferir de forma tão radical nas vidas das pessoas que são ligadas ao campo pelos rodeios. A questão dos acidentes e lesões é inerente a qualquer atividade, até um auxiliar administrativo pode levar um choque em um escritório.
Quando se analisa uma questão como essa, é muito difícil resolvê-la de forma pontual. Tem todo um contexto histórico a ser avaliado. Em um debate como este haverá réplica, tréplica, um bate rebate incessável. Tem que ser levado em conta a construção de uma cultura, e que esta acontece em um contexto social, neste caso, na contemporaneidade, como é o caso da cultura rural. Não é simplesmente mudar o Rodeio por conta de uma nova visão amparada por mecanismos jurídicos, há elementos basilares que devem ser respeitados, como a identidade cultural de um povo e a sua forma de vida. Mundo a fora serão encontradas culturas com os mais diversos hábitos.
Não nos cabe julgar a cultura de um determinado povo e sim aceitá-la, tentar entendê-la.
No caso do Brasil, a identidade cultural é formada por um grande mosaico. Definir o que é relevante em termos de cultura levará a um processo seletivo que possivelmente resultará em homogeneização, algo contraditório em tempos que se defende diversidade. Assim, vale preservar o que nos diferencia como povo e, que muitas vezes representa o sustento das diversas comunidades produtoras das manifestações culturais brasileiras.
Não podemos permitir que a cultura rural e o que a representa seja atacado sem nos preparamos.
Já existem posicionamentos questionáveis, como o de empresas estatais que não patrocinam eventos que envolvem animais. No caso das empresas privadas é tolerável, mas quando se trata de empresas públicas, não, já que a nação é composta por todos os grupos culturais. Esse posicionamento demonstra que nessas empresas não têm representantes dos interessados em rodeios, o que é injusto. As pessoas que compõe a comunidade produtora da manifestação cultural rodeio são tão donas das estatais quanto qualquer outra.
O Rodeio não é uma manifestação cultural menos importante do que as que não envolvem animais. Portanto, o laçador não é menos importante que o capoeirista, do que o sambista, etc.
A comunidade produtora do Rodeio já deveria ter se manifestado sobre essa questão dos patrocínios das estatais, antes dos ataques dos protetores dos animais. Esses espaços tem que ser solicitados por direito, o mundo rural tem que buscar ocupar posições de liderança.
Há pelo menos dez anos a legislação referente aos Rodeios vem mudando sem a menor preocupação por parte da comunidade produtora da manifestação cultural Rodeio. Não há uma participação ativa no sentido de mostrar a importância socioeconômica da atividade e de defender a sua importância na sociedade, que está passando a ser vista somente como urbana.
Enquanto isso, comunidades produtoras de manifestações culturais como a do Queijo Minas, Patrimônio Imaterial do Brasil, vêm buscando abrandar normas sanitárias com a intenção de viabilizar o comércio do queijo artesanal, como forma de manter viva a tradição e a renda das famílias envolvidas.
Promovo essa reflexão que envolve o reconhecimento como patrimônio imaterial há quase dez anos no Rio Grande do Sul. Ou seja, muito antes da PEC 270/2016, que visa preservar os rodeios, vaquejadas e expressões artístico-culturais decorrentes, como patrimônio cultural imaterial brasileiro, eu já trabalhava nesse sentido. O laço já poderia ter sido reconhecido como patrimônio imaterial há bastante tempo. Quando o MTG me criticava sobre o reconhecimento como esporte, ignorava que paralelamente, eu buscava o reconhecimento como Patrimônio Imaterial do Brasil. Por várias vezes declarei em ofício encaminhado à presidência do referido Movimento, que eu estava buscando para o laço, o maior reconhecimento que poderia ser obtido no campo da cultura, que eu estava fazendo o maior trabalho de salvaguarda possível. Essa soberba dos dirigentes do MTG, em achar que sabiam tudo de tradição, contribuiu em muito para aumentar ameaça aos rodeios.
Essa defesa se tornou mais forte a partir da fundação da Federação Gaúcha de Laço – FGL. Tal entidade se tornou uma entidade com legitimidade para defender o laço, se engajando na busca do reconhecimento do laço como esporte e Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.
Buscar o reconhecimento do laço como patrimônio imaterial, envolve fazer com que reconheçam a importância dessa prática diante das demais no cenário cultural nacional. Nós temos que fazer com que reconheçam que não somos menos importantes do que qualquer outro produtor de manifestação cultural, o que é uma verdade.
O laço faz parte da economia da Cultura e do Esporte. Gera empreendimentos e um mercado de entretenimento, logo, um impacto socioeconômico que justifica a sua função social, tão relevante quanto a sua importância cultural.
O laço tem um fim pedagógico, um fim educacional que se manifesta no processo de Tradição, o qual possibilita a transmissão de saberes, envolvendo valores, como a paixão pelo cavalo e pelo gado. Somos apaixonados por boi e cavalo, e somos preparados para essa paixão desde que nascemos. Somos educados para respeitar e venerar esses animais. Essa é a formação de um verdadeiro membro da comunidade produtora da manifestação cultural laço.
Fui tropeiro, além de pesquisador da temática laço. Me criei cuidando de gado, não admito maldade. Não sou mercenário e nem pouco esclarecido para admitir qualquer argumentação que não seja muito bem fundamentada. Conheço a realidade da cultura urbana e da rural. A nossa Cultura, a tradição campeira, é secular e é menos violenta que a Cultura urbana que gera milhares de assassinatos ao ano.
Vai ter gente criando seus filhos para não gostar de rodeios, apresentando novos princípios e hábitos, em resumo, porque não gosta. E vai ter gente mantendo a tradição, através da transmissão de saberes seculares aos seus filhos, não vendo mal algum nisso.
No tocante à lógica, cada um vai apresentar a sua e, em uma primeira instância, os fundamentos surgirão por conveniência de ambas as partes. Em suma, cada um tem seu modo de pensar sustentado por princípios. Da mesma forma, cada um tem a sua importância e espaço. Cada um pensa do seu jeito e acredita no que acha certo. Argumentos não faltarão de ambos os lados.
Todavia, tudo é uma questão de ideologia, que acaba no campo filosófico. Milhões de pessoas gostam de rodeio e não vêem mal nisso, outras pensam que há, e é isso. Surgiu uma nova forma de pensar sobre os rodeios e mesmo que essa não tenha bases muito sólidas, ela agora existe. O que não se mostra tolerável e democrático, é um querer o fim do outro, como desejam os ativistas. A solução é estar intelectualmente preparado para debates filosóficos, para que esse problema não ultrapasse o campo da filosofia. Essa exposição pode ser simplista, mas é o que acontece.
Por fim, cabe a comunidade produtora da manifestação cultural rodeio lutar pelo que acha certo, defender o seu modo de vida rural que permanece a milênios sendo visto como algo salutar. Não há maldade, se considerados os bons princípios que devem nortear a comunidade rural.
Eduardo Fonseca Alves
Pesquisador da Temática Laço
Idealizador da Federação Gaúcha de Laço – FGL
Atual Diretor Cultural da FGL
Laçador
Comentar